Gerson Tavares: O Cinema Novo sob o signo da melancolia
por Cesar Garcia Lima*
Para IMAGOFAGIA – Revista de la Asociación de Estudios de Cine y Audiovisual
Cinema Novo, surgido no Brasil em 1952 sob a influência do despojamento neorrealista italiano e da Nouvelle Vague, teve Glauber Rocha como seu nome de maior evidência, consolidando uma filmografia vigorosa, na qual conviviam as referências patricarcais do sertão e das cidades modernas. Além do gênio criativo de Glauber ou da originalidade de Joaquim Pedro de Andrade, surgiu também no time de cineastas brasileiros emergentes o fluminense Gerson Tavares (1926-), cujos temas intimistas não tiveram grande destaque em sua época. O DVD duplo Resgate da obra cinematográfica de Gerson Tavares (2015) traz de volta à cena as principais produções do diretor, roteirista e 2 produtor. A obra de Tavares evidencia um autor que merece ser revisitado por sua linguagem cinematográfica, em que são colocados em conflito o humano, o urbano e a natureza. Sob a coordenação do pesquisador Rafael de Luna Freire, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), o projeto de restauração da obra de Tavares incluiu dois longas-metragens de ficção e sete curtas-metragens documentais. Freire é, ainda, diretor do média-metragem documental Reencontro com o cinema (2014), sobre a vida atual do cineasta, também integrado à coletânea. É uma iniciativa de fôlego do ponto de vista da conservação de acervos fílmicos e de repercussão para a pesquisa histórica do audiovisual brasileiro, que revê a antes pouco acessível filmografia de Gerson Tavares. O cineasta sempre esteve mais preocupado em demonstrar seus recursos técnicos e narrativos do que engajar seu cinema em uma vanguarda criativa, impregnada pelas ideologias de esquerda. Talvez isso explique, pelo menos em parte, a trajetória do cineasta que, depois de produzir os longas Amor e desamor (1966) e Antes, o verão (1968), acabou tomando o caminho de produção de curtas institucionais, patrocinados pelo governo militar. Tavares deixou o meio cinematográfico há mais de trinta anos e o trabalho de restauração de seus filmes, a cargo de Francisco Moreira (falecido em janeiro deste ano), do Labocine, expõe um cinema reflexivo, marcado pela melancolia e pela discussão afetiva. Suas principais influências são o existencialismo de Jean-Paul Sartre e a cinematografia de Michelangelo Antonioni, como ele próprio admite no documentário realizado por Freire, em Cabo Frio, litoral fluminense. Em termos de trajetória, sua figura remete ao carioca Alberto Cavalcanti (1893-1982), o produtor e diretor brasileiro que retornou ao Brasil depois de décadas na Europa, para ser produtor-geral da Companhia Vera Cruz, mas não encontrou seu caminho por aqui e acabou retornando à França. 3 Assim como Cavalcanti, é como deslocado que Tavares estabeleceu sua trajetória. Estudante do curso de Belas Artes da Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro), Tavares foi premiado com uma bolsa de estudos e partiu para a Europa em 1953, fixando-se inicialmente em Paris, onde passou a acompanhar detidamente a produção cinematográfica francesa. Depois se transferiu para Roma, entre 1956 e 1958, já como estudante do Centro Sperimentale di Cinematografia. De volta ao Brasil, ainda em 1958, fundou a Saga Filmes, tendo como sócios Sergio Montagna e Joaquim Pedro de Andrade. Pela produtora, Tavares dirigiu A Petrobrás prepara seu pessoal técnico (1958, cor, 12 min.), típico filme institucional do período, que adota o tom ufanista, apostando na empresa petrolífera como alavanca do progresso industrial. Atualmente, a empresa petrolífera estatal se tornou a principal empresa investigada em esquemas de corrupção envolvendo diferentes partidos políticos. O curta-metragem aborda a expectativa inicial de projeção esperada da companhia não apenas em termos de exploração de petróleo, mas também como base para a formação de novas gerações de profissionais. Outros três curtas-metragens restaurados pelo projeto – O grande rio; Brasília, capital do século e Arte no Brasil hoje – foram realizados conjuntamente em 1959 e marcam a parceria de Gerson Tavares e o produtor Ruy Pereira da Silva. O grande rio (cor, 10 min.) mostra a cultura ribeirinha do rio São Francisco, que atravessa Minas Gerais e Bahia, dentre outros estados do Brasil, exercendo um olhar etnográfico sobre as festas folclóricas regionais e compondo um mosaico de tipos humanos como o pescador, a lavadeira e os devotos que visitam a cidade de Bom Jesus da Lapa. A narração é sempre em off e o modo expositivo não esquece o termo subdesenvolvimento para traçar um panorama da região, atualmente modificada por obras de transposição do rio, tema agora explorado na telenovela Velho Chico (Globo, 2016). Em Arte no Brasil hoje (cor, 11 min.), a proposta de refletir sobre a produção artística 4 brasileira mostrando os trabalhos de Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Candido Portinari e Bruno Giorgi é mais grandiosa do que o resultado, excessivamente ligeiro em sua abordagem. Em Brasília, capital do século (cor, 11 min.), o tom grandiloquente permanece, com a narração em off clamando que “implantamse no deserto os genes da civilização do litoral”. Dentre os curtas restaurados é no despretensioso Gafieira (1972, cor, 12 min.) que o traço autoral de Tavares é melhor representado, escapando do tom grandioso de explorar a identidade brasileira, com a câmera percorrendo livremente um tradicional salão de dança do centro do Rio de Janeiro, observando os personagens sem o aprisionamento da narração. Já Ensino artístico (1973, cor, 10 min.) e Saveiros (1977, cor, 8 min.) são filmes menos elaborados que fecham a produção de curtas recuperados.
Intimidade devastada Os dois longas-metragens contidos nos DVDs, no entanto, são o material mais importante da carreira de Gerson Tavares e o motivo maior para dimensionar 5 sua importância, no que há de atual e de anacrônico. Afinal, em um país no qual o cinema enfrenta até hoje dificuldades para se estabelecer como indústria, não é estranho que um diretor mais afeito à encenação teatral do que à iconoclastia do Cinema Novo tenha tido dificuldade em promover sua carreira. É bem verdade que o próprio Tavares, desde quando decidiu voltar ao Brasil, optou por atuar na área de locação de equipamentos com sua Verona Filmes e não por investir em seus filmes densos e afeitos ao conflito conjugal. Amor e desamor (1966, pb, 70 min.), primeiro longa de Tavares, é um filme psicológico profundamente teatral, claustrofóbico e desesperançado, como se fosse um roteiro de Edward Albee com direção de Michelangelo Antonioni, com destaque na discussão sobre relacionamentos e longas sequências apenas com os dois personagens principais. A ambientação do encontro de Alberto (Leonardo Villar) e Norma (Leila Krespi, em seu primeiro papel no cinema) na Brasília recém-construída é reveladora do vazio dos personagens, que já se conhecem e vivem uma noite de amor casual, mas não conseguem, de fato, se revelar um ao outro. A ex-mulher de Alberto, Selma (Betty Faria, também estreando), em flashback, sugere traumas de convivência provocados pela resistência dele em relação à paternidade. Com a fotografia em preto e branco e a trilha sonora de Rogério Duprat criando um clima de suspense, o filme tem uma aura de estranheza, reforçada por planos oníricos do intelectualizado personagem Alberto, em trechos não narrativos. Pela perspectiva presente, o filme se torna curioso por mostrar, mesmo que timidamente, essa relação entre a psicologia dos personagens e o ambiente, seja pela paisagem ou pela arquitetura, experimentando texturas e iluminação pouco convencional. Ainda que o idealismo de Alberto apareça de maneira sutil, é traço expressivo de um personagem recorrente do Cinema Novo: o intelectual. Como observa JeanClaude Bernadet (2004: 151) em Historiografia Clássica do Cinema Brasileiro, essa temática fica explícita depois do golpe militar brasileiro, em 1964, em que “setores da intelectualidade encontraram uma função social: a concepção da arte como ativa nas transformações sociais; a concepção do intelectual como 6 portador e produtor de consciência, e cuja arte pode conscientizar um povo considerado como ‘alienado’ “. Como observa Bernadet, o personagem intelectual, em muitos filmes do Cinema Novo, sobretudo em O desafio (Paulo Cesar Saraceni, 1965), é também metáfora dos próprios cineastas e seus projetos em construção, muitas vezes inconclusos. O personagem Alberto tampouco deixa de ser um alter ego de Gerson Tavares, ainda que o diretor prefira sugerir mais do que deixar claro seus dilemas ideológicos. O cenário, neste caso, é uma ambientação evidente de impasse: como ser idealista na capital federal do Brasil em plena ditadura? Mais do que responder a questão, o filme é uma indagação imagética bem-comportada do conflito.
Antes, o Verão (1968, pb, 80 min.), segundo e último longa-metragem de Tavares, teve sua restauração em 35mm realizada a partir de duas cópias depositadas na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, das quais foi feito um novo internegativo, base para o telecine em Full-HD. Apenas essa restauração já valeria a pena para dimensionar a importância de Gerson Tavares e de uma filmografia na fronteira da narrativa intimista e de uma técnica de direção e fotografías cuidadosas que o cinema brasileiro levou pelo menos mais de duas décadas para atingir. O cuidado técnico, no entanto, em que se percebe a influência das artes plásticas –formação original de Tavares– é amparado pela adaptação literária, até hoje uma das mais profícuas fontes dos roteiros brasileiros. Baseado em livro homônimo de Carlos Heitor Cony, Antes, o Verão tem como protagonistas Jardel Filho e Norma Bengell, dois ícones do Cinema Novo. Jardel, vindo do sucesso de Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967) e Norma, famosa por seu desempenho em Os cafajestes (Ruy Guerra, 1962). A dupla forma o estranho casal Luís e Maria Clara, em férias em Cabo Frio (mesmo cenário de Os cafajestes e atual morada do diretor), em uma narrativa que mantém a tensão entre o conflito íntimo e o policial. O casal, em férias na casa de praia com os dois filhos adolescentes, é investigado como suspeito pela morte de um vagabundo (participação especial de Hugo Carvana, outro nome importante do cinema brasileiro). O desenvolvimento desta storyline é bastante tortuoso e inclui a crise do casal em sequências especialmente sugestivas, como a que emula Burt Lancaster e Deborah Kerr na praia em A um passo da eternidade (From here to eternity, Fred Zinemann, 1953) e no momento sensual no terraço, com a nudez de Norma Bengell. Hábil em usar elementos da natureza como o vento, a revoada dos pássaros, a presença de crustáceos na praia, o roteiro – do próprio Tavares – retarda demais a investigação policial, trazendo uma continuidade um pouco confusa, mas que não ofusca a ambientação 8 psicológica tensa refletida a partir dos personagens principais, caracterizados como se estivessem à beira do colapso emocional. Como nome deslocado no Cinema Novo, à maneira de Alberto Cavalcanti durante sua participação na Companhia Vera Cruz, poderia ter legado ao cinema um número maior de produções que revelassem a intimidade burguesa brasileira em conflito com uma realidade hostil, como faz com tanta veemência em seus longas-metragens. Com apenas dois filmes, ele referenda sua excelência técnica e criativa e ganha salvo-conduto para ser incluído em pesquisas sobre o Cinema Novo. Dessa maneira, a história do audiovisual brasileiro em uma perspectiva mais realista na qual a melancolia dos personagens se sobressai, escapando do clichê carnavalizado e delirante do tipo brasileiro.
Bibliografía Bernadet, Jean-Claude. Historiografia Clássica do Cinema Brasileiro: metodologia e pedagogia. São Paulo: Annablume, 2004.
* Cesar Garcia Lima é doutor em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e jornalista pela Faculdade Cásper Líbero, de São Paulo, cidade onde atuou como crítico de cinema. No Rio de Janeiro, foi editor-chefe do Canal Brasil. Diretor e roteirista do documentário Soldados da Borracha (2010), premiado pelo edital ETNODOC. Atualmente, realiza pós-doc sobre literatura brasileira contemporânea na Universidade Federal Fluminense (UFF), com bolsa de estudos da FAPERJ. Poeta, publicou Águas desnecessárias (1997) e Este livro não é um objeto (2006). E-mail: cegali@gmail.com